RIO - Na maioria das escolas públicas brasileiras, para passar de ano, os alunos têm que rezar. Literalmente. Levantamento feito pelo portal Qedu.org.br a partir de dados do questionário da Prova Brasil 2011, do Ministério da Educação, mostra que em 51% dos colégios há o costume de se fazer orações ou cantar músicas religiosas. Apesar de contrariar a Lei de Diretrizes e Bases (LDB), segundo a qual o ensino religioso é facultativo, 49% dos diretores entrevistados admitiram que a presença nas aulas dessa disciplina é obrigatória. Para completar, em 79% das escolas não há atividades alternativas para estudantes que não queiram assistir às aulas.
A., de 13 anos, estuda numa escola municipal em São João de Meriti em que o ensino religioso é confessional, e a presença nas aulas, obrigatória. Praticante de candomblé, ela diz sofrer discriminação por parte de três professoras evangélicas, que tentam convertê-la. Com medo de retaliações, a menina pede que nem seu nome nem o de seu colégio sejam identificados. Ela relata que é obrigada não só a frequentar as aulas, como também a fazer orações.
— A professora manda eu rezar “Ó pai bondoso, livra-nos de todo espírito do mal, para quem é da macumba entrar para a igreja”, porque eu sou do candomblé. Se eu não repetir a oração, ela me manda para a sala da direção. E a diretora diz que a professora tem que ensinar o que ela acha que está certo. Não posso faltar, senão, ela disse que vou ser reprovada — conta a aluna do 5º ano do ensino fundamental.
A. recorda o constrangimento por que passou uma amiga sua candomblecista em 2012. Como parte de um ritual de iniciação na religião, a menina havia raspado o cabelo e tinha que usar vestes brancas durante um período:
— Quando a professora viu, rezou “tira todo o capeta do corpo dessa menina, que ela tem que ir para a igreja”. Depois disso, minha amiga trocou de colégio. Quando eu fizer o santo (ritual de iniciação), nem vou poder ir à escola.
Pós-graduada em Orientação Educacional e Supervisão Escolar, a professora Djenane Lessa incluiu o caso de A. como objeto de estudo em sua pesquisa de campo para a pós-graduação em Ensino da História e da Cultura Africana e Afrodescendente no Instituto Federal de Educação do Rio de Janeiro (IFRJ). Ela analisa a situação e lembra que a LDB veda qualquer tipo de proselitismo.
— A escola é um espaço laico. Em uma aula de religião confessional com um grupo misto, de várias orientações religiosas, uma oração direcionada pode ser entendida como proselitismo, já que obriga a quem não tem interesse a ouvir ou mesmo repetir a mesma — explica Djenane.
Já no colégio estadual em que Y. cursa o 1º ano do ensino médio, em Engenho de Dentro, as aulas de ensino religioso são facultativas, mas não há atividades alternativas para quem não quiser frequentá-las. A estudante de 15 anos é umbandista e diz que o professor, católico, fala sobre várias religiões, mas reza orações como Pai Nosso e Ave Maria, além de cantar músicas gospel.
— Fico quieta durante as orações, mas todo mundo reza. Tem vezes que o professor me chama de macumbeira, e tenho que corrigi-lo. Outros alunos ficam rindo de mim, dizendo que a “má cumba” é pra fazer o mal. Mas não ligo. Adoro minha religião e vou continuar nela — afirma ela, sem querer revelar sua identidade.
Especialistas criticam aulas da rede pública
Sobre a ausência de atividades alternativas ao ensino religioso, Luiz Antônio Cunha, professor titular da Faculdade de Educação da UFRJ e coordenador do Observatório da Laicidade do Estado, evoca a lei.
— A escola não pergunta aos pais se querem ensino religioso ou outra alternativa: ficar na rua, zanzando pela escola, no recreio jogando bola etc. Só seria facultativo se houvesse alternativas pedagógicas. Como não há, torna-se obrigatório o que a Constituição diz que é facultativo — argumenta Cunha.
Os irmãos X. e Z., de 7 e 9 anos, optam por não revelar que são umbandistas por medo de serem discriminados pela maioria dos estudantes católicos da escola municipal onde estudam, em Água Santa.
— Todo mundo lá é da igreja. Tenho vergonha porque acho que vão me chamar de macumbeiro — diz X.
— Tenho medo de contar, porque a maioria é católica. A professora sempre faz aquela reza que todos os católicos fazem — completa Z.
Também umbandista, a professora de Artes da rede municipal do Rio Christiane Ribeiro diz que alguns seus alunos de 7 a 13 anos começaram a revelar que tinham a mesma religião que ela após virem sua tatuagem com a inscrição "Eparrei, Oyá" (Salve Iansã!, em yourubá).
— Tanto o calar quanto o fingir que não se sente incomodado com o deboche são formas de engolir o preconceito. Eles têm medo de ficar à margem — relata Christiane.
Pesquisadora do tema há mais de 20 anos, a professora da faculdade de Educação da Uerj Stela Guedes Caputo acompanhou a infância e adolescência de candomblecistas, que foram vítima de discriminação religiosa na escola. O estudo, do mestrado ao pós-doutorado, virou o livro “Educação nos terreiros: e como a escola se relaciona com o candomblé”. Stela faz um balanço das consequências do impacto da discriminação a longo prazo.
— Ele ouve uma professora dizer que ele é filho ou filha do Diabo. Esse aluno tem o corpo, a alma cindida. Ele tem orgulho da religião dele, mas na escola ele sofre, e a maioria esconde a religião que ama. Isso é sofrimento, e sofrimento marca para sempre, diminui a autoestima, compromete o aprendizado, a subjetividade, a vida — resume Stela.
Para o economista Ernesto Martins Faria, coordenador de projetos da Fundação Lemann e responsável pela tabulação dos dados, a divulgação é importante para a discussão do tema:
— Auxiliamos para que essas informações cheguem às pessoas que discutem e estudam o tema, ajudando para que o debate seja mais qualificado.
TERESINA e RIO- Os 161 alunos do 1º ao 5º ano do ensino fundamental da Escola Municipal Aurino Nunes, no povoado rural Bela Vista, a 32 quilômetros do centro de Teresina, começam as aulas no pátio rezando o Pai Nosso e cantando um cântico religioso que fala na presença de Deus e do Espírito Santo. Ao fim do “amém”, os alunos fazem o sinal da cruz antes de entrar na sala de aula.
A vice-diretora da escola, Irene Maria da Silva conta que implantou a oração e o cântico religioso antes das aulas quando entrou no colégio, em 1986. Católica, ela diz que as práticas religiosas são importantes porque, além de deixar os alunos mais comportados, as orações tornam as crianças menos violentas. Após a oração e os cantos, os professores discutem sobre drogas, problema que está avançando na zona rural.
— Aqui os alunos têm uma fezinha em Deus. Após o Pai Nosso, fazemos uma palestra sobre o que se passa na comunidade. Eles obedecem demais e já sabem o Pai Nosso decorado. Sou religiosa, e todas as escolas deveriam começar as aulas com uma oração — defende Irene, que também dá aula de ciências e matemática.
Os alunos evangélicos dizem que os pais não gostam que rezem na escola com professoras católicas. Mãe de dois alunos, a dona de casa Suely Feitosa, de 30 anos, se opõe a que os estudantes rezem antes de começar a estudar nas salas de aula. Segundo ela, as crianças ficam confusas por aprender a rezar a Ave Maria, já que as religiões não-católicas não têm culto à mãe de Jesus.
— A escola tem várias crianças que são de outra religião, o que fica desagradável para a formação psicológica dos alunos — diz Suely.
As orações incomodam também os que não acreditam em Deus. Em Miraí, a 300km de Belo Horizonte, o caso de preconceito contra o estudante ateu Ciel Vieira ficou famoso em 2012. Ele postou um vídeo no YouTube contando que, após se recusar a rezar o Pai Nosso conduzido por uma professora de geografia da Escola Estadual Santo Antônio, ouviu dela que “jovem que não tem Deus no coração nunca vai ser nada na vida”.
Após o episódio, durante uma oração no início de uma aula em que chegara atrasado, parte dos alunos católicos trocou a última frase do Pai Nosso de “mas livrai-nos do mal” por “mas livrai-nos do Ciel”.
O estudante denunciou o caso à Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea), que interveio junto à secretaria estadual de Educação. Depois de muita polêmica, a secretaria informou que havia orientado a professora a parar de rezar.
Atualmente morando em Juiz de Fora, Ciel faz um balanço um ano após ter se formado no Santo Antônio — um dos nomes mais populares entre as 160 mil escolas brasileiras, ao lado de Nossa Senhora, Jesus Cristo, São Francisco.
— Desconhecer que o estado é laico é falta de estrutura da escola. As pessoas se reprimem normalmente e não têm a coragem que tive. Meu objetivo principal foi mostrar que, apesar de ser minoria temos uma força grande — diz Ciel.
O presidente da Atea, Daniel Sottomaior, cuida atualmente de dois casos semelhantes: um aluno que é obrigado a assistir a aulas de religião numa escola estadual de Esteio (RS), e outro a fazer orações num colégio militar de Goiânia.
— O primeiro passo é oficiar a instituição informando a ilegalidade pela Constituição e a LDB. Damos cinco dias para não cobrar a oração, liberar das aulas e passar uma circular a todos alunos dizendo que são facultativas. Se não cumprem, acionamos as secretarias de Educação, o MP e o Conselho Tutelar — explica Sottomaior.
Há quem defenda transformar a oração em lei. No início de 2012, a Câmara Municipal de Ilhéus (BA) tentou implantar na cidade uma lei que obrigava os alunos da rede pública a rezarem o Pai Nosso antes do início das aulas. A “Lei do Pai Nosso”, de autoria do vereador Alzimário Belmonte (PP-BA), foi aprovada na Câmara e sancionada pelo então prefeito Newton Lima (PT).
TJ proibiu lei do pai nosso
Logo depois, o Ministério Público Estadual entendeu que a lei violava “de modo explícito” as Constituições Federal e Estadual “por afrontar diretamente a liberdade de religião e culto”, entrando com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no Tribunal de Justiça do Estado da Bahia para suspender os efeitos da lei. O desembargador Clésio Rômulo Carrilho Rosa acatou o pedido do MPE e suspendeu a lei em abril de 2012.
Em Apucarana, no norte do Paraná, um projeto de lei similar foi derrubado na segunda votação, em julho de 2012, por pressão do Ministério Público, que ameaçou entrar com uma Adin caso fosse aprovado.
Em março do ano passado, a família de um estudante de 15 anos que sofreu bullying por se recusar a fazer orações na escola Antônio Caputo, em são Bernardo do Campo, decidiu processar o estado de São Paulo por discriminação religiosa.
Tocantins é o estado com maior percentual de escolas públicas em que há orações ou cantos: 74%. Em seguida, vêm Goiás (67%), Espírito Santo (66%), Amazonas (65%) e Minas Gerais (64,8%).